Em 1910, a Fundação Carnegie publica o Relatório Flexner, contendo uma critica à situação da medicina àquela época e propondo soluções para a questão. Este relatório se converteu na base para a implantação do ensino e da prática médica tal como hoje as encontramos. Suas propostas principais eram:
definição dos padrões de entrada e ampliação, para quatro anos, nos cursos médicos;
introdução do ensino laboratorial;
estímulo à docência em tempo integral;
expansão do ensino clínico, especialmente em hospitais;
vinculação das escolas médicas às universidades;
ênfase na pesquisa biológica como forma de superar a era empírica do ensino médico;
vinculac,ão da pesquisa ao ensino;
controle do exercício profissional pela profissão organizada.
Naquele momento histórico iniciava-se a era do cientificismo também na medicina e, em momento algum, observava-se qualquer preocupação com as questões ético-morais, nem na análise das circunstâncias do ensino médico, muito menos nas propostas de mudança presentes no relatório. A abrangência do Relatório Flexner era muito maior do que os limites da medicina, causando a fusão e fechamento de escolas médicas e de vagas oferecidas. Houve uma mudança na composição da classe social que compunha a profissão médica, e esta tornou-se um nicho reservado às classes média-alta e alta. Escolas médicas destinadas a negros foram fechadas e o número de alunos negros matriculados nas escolas remanescentes foi significativamente reduzido.Segundo Ziem, a medicina científica trouxe uma hierarquização da educação médica, resultando numa estrutura discriminatória, privilegiando homens, brancos, e as classes média-alta e alta. Tratava-se de uma composição social sensível à ideologia da medicina científica e que traria para a prática médica os valores morais próprios de sua categoria social .
No inicio do século, neste momento progressista, centenas de documentos foram elaborados com críticas e propostas de mudanças às mais diversas disciplinas e o Relatório Flexner teria sido mais um dentre eles se as fundações privadas americanas não houvessem aplicado na sua implementação, no período de 1910 a 1930, cerca de 300 milhões de dólares.Os profissionais da medicina, por meio da Associação Médica Americana (AMA), além de grandes indústrias, apoiaram a origem e consecução do relatório. A AMA criada em 1847, com a finalidade precípua de defender a alopatia ameaçada, naquele período, pela homeopatia, na verdade se tornou um campo de debates entre médicos clínicos e cientistas, até que estes últimos assumissem o controle da AMA na busca de uma medicina mais científica.
A medicina científica ou o sistema médico do capital monopolista institucionaliza-se hegemonicamente por meio da ligação orgânica entre o capital, as universidades e a corporação médica. Evidentemente, este fato trouxe mudanças substantivas no conceito de "objeto" da prática médica e, como conseqüência, alterou-se a relação doente x médico.A pessoa humana, antes vista como sujeito do processo terapêutico, respeitada em sua dignidade, vontade, liberdade e razão, transforma-se em objeto de estudos, consumidora de tecnologia, um indivíduo como os objetos de estudo de disciplinas como a química, a física ou a botânica.Conforme foi dito anteriormente, as alterações ocorreram na relação doente x médico e, portanto, trata-se do relacionamento, fenômeno que é dual, conseqüentemente, também os médicos passaram a ser vistos como simples prestadores de serviços, como outros profissionais presentes na sociedade.A objetivação do homem pela medicina trouxe consigo a mesma posição da sociedade em relação ao médico. A arte médica, desprestigiada pela própria medicina em favor da ciência e sua tecnologia, causou o embaçamento do mítico e do místico no papel social do médico.
relatório de Flexner=Em 1910, o educador americano Abraham Flexner fez uma avaliação do ensino médico nos Estados Unidos e Canadá, e concluiu que, das 155 faculdades de medicina existentes, 120 apresentavam condições péssimas de funcionamento. Os alunos eram admitidos sem nenhum preparo, não existiam laboratórios, não havia relação entre a formação científica e o trabalho clínico, e os professores não tinham controle sobre os hospitais universitários. O relatório de Flexner, Medical Education in the United States and Canada, teve o efeito de um terremoto, e nos anos seguintes a quase totalidade das instituições por ele criticadas fechou suas portas.
O relatório Flexner ficou na história como um exemplo da importância da avaliação e do controle de qualidade, e sua história vem muitas vezes à tona quando pensamos nas condições precárias da maioria de nossas instituições de ensino superior. Que falta nos faz um Flexner, pensamos, e sobretudo que falta nos faz a existência de mecanismos que façam desaparecer as instituições que não cumpram com os critérios mínimos e aceitáveis de qualidade!
Alguns anos mais tarde, Flexner escreveria um livro comparando as universidades americanas, inglesas e alemãs, aonde pregaria a superioridade do modelo da universidade humboldtiana, alemã, sobre o dos demais países(1). As universidades modernas, pensava Flexner, devem ser instituições dedicadas à cultura, à ciência e às profissões cultas - tudo aquilo que a expressão alemã Wissenschaft significava. Elas devem ser as guardiãs da tradição, e o centro das formas mais avançadas de reflexão e conhecimento. Elas devem evitar a especialização excessiva, e não abrir espaço para a educação secundária, técnica, popular, ou meramente profissional. Nesta perspectiva, o ensino superior nos Estados Unidos parecia especialmente lamentável. O título de "universidade" era dado para instituições de qualquer tipo, não existia nenhuma noção sobre as diferenças entre a verdadeira cultura e a mera educação continuada ou a formação técnica e profissionalizante, e a venda de serviços educacionais de todo tipo, a quem quisesse pagar, por instituições de renome como a Universidade de Columbia, lhe parecia um verdadeiro escândalo. Era necessário, propunha, fazer com a Universidade americana como um todo o que já tinha sido feito com o ensino médico.
O conceito de qualidade utilizado por Flexner no início do século presidiu a legislação da reforma universitária brasileira. O artigo primeiro da lei 5.540, de 1968, reza que "o ensino superior tem por objetivo a pesquisa, o desenvolvimento das ciências, letras e artes e a formação de profissionais de nível universitário". O artigo 2@ diz que "o ensino superior, indissociável da pesquisa, será ministrados em universidades e, excepcionalmente, em estabelecimentos isolados". Nesta época, no entanto, o mundo já não era o mesmo. A Universidade alemã, demasiado amarrada ao Estado, não soube resistir à ascensão do nazismo, e perdeu, com ele, muito do brilho e do prestígio de que gozava até então. Não houve uma nova reforma Flexner para o ensino superior americano, mas, nos últimos 50 anos, os Estados Unidos desenvolveram o sistema de educação superior de maior porte, abrangência e qualidade de todo o mundo, e que é hoje copiado pela maioria dos países. Aonde Flexner errou? Aonde erramos nós?
Em 1968, no ano da Reforma Universitária brasileira e do movimentos estudantis na Europa e nos Estados Unidos, o livro de Flexner foi republicado com um prefácio de Clark Kerr, então presidente da Universidade da California. Neste prefácio, Kerr, ao mesmo tempo em que expressa sua admiração por Flexner, mostra com clareza aonde ele se equivocou, e o que significa uma universidade moderna e de qualidade nos dias atuais. Da análise de Kerr, dois aspectos nos interessam particularmente.
O primeiro equívoco de Flexner foi o de pensar na universidade como um todo integrado e orgânico, unido pelos valores comuns da ciência, das artes e da cultura. A aparente unidade das universidades tradicionais residia mais em seu tamanho reduzido, e na origem aristocrática de seus professores e alunos, do que em uma efetiva integração do conhecimento e da educação. As universidades modernas são gigantescas, juntam pessoas de todas as origens sociais e com maneiras muito diferentes de entender o que é a pesquisa, a educação, a cultura e as artes. Elas são, na expressão cunhada por Kerr, muito mais "multiversidades" do que universidades no sentido tradicional.
O segundo equívoco foi supor que esta diversidade de funções e valores não poderiam conviver sem se destruir mutuamente. Foi não entender que qualidade e quantidade poderiam combinar-se e se entender. Que não havia incompatibilidade entre prestar serviços à comunidade, dar cursos de verão, manter equipes de futebol e realizar pesquisas de alta qualidade. Foi tudo isto, precisamente, o que fizeram as grandes universidades americanas, e que as ajudaram a chegar na posição de prestígio e reconhecimento que têm hoje.
É claro que o fracasso das universidades alemãs, o sucesso das universidades americanas, e a posição intermediária ocupada pelas universidades inglesas, refletem em grande parte a posição relativa de cada um destes países a partir da segunda guerra mundial. Um sistema universitário, nos lembra Kerr, não pode ser separado do desempenho da sociedade que o apóia, não é uma coisa isolada. Isto, no entanto, não explica tudo. Ao se adaptar para a posição de liderança que assumiu na segunda metade deste século, o ensino superior americano desenvolveu algumas características que hoje são centrais para qualquer sistema de ensino superior que pretenda se ajustar ao mundo contemporâneo, e que por isto necessitam ser examinadas e entendidas com cuidado.
A principal característica deste sistema, assinalada por Kerr, é o pluralismo e a diversidade. Novos ricos, sem as tradições da aristocracia, os americanos criaram uma infinidade de formatos institucionais e de áreas de estudo, que iam desde as tentativas de reproduzir as melhores tradições inglesas e alemãs até o Departamento de Economia Doméstica da Universidade de Chicago, que aprovava, para horror de Flexner, teses de mestrado sobre "uma comparação de tempos e movimentos de quatro métodos de lavar pratos", ou sobre "a compra de roupa de mulheres pelo correio". A diversidade permitiu que o ensino superior norte-americano fosse o primeiro no mundo a se massificar, a ponto de que, hoje, cerca de metade dos jovens naquele país entrem em alguma instituição de ensino pós-secundário. É certo que, em boa parte, esta educação superior de massas acaba por compensar um ensino secundário de má qualidade, e proporciona qualificações que não mereceriam o título de "universitárias" em outras partes do mundo. Mas a tendência à massificação do ensino superior é um fenômeno mundial, que leva a um número cada vez maior de jovens e adultos a buscar educação em instituições de nível superior, que não podem, simplesmente, voltar as costas a esta demanda e a estas aspirações. Ao desenvolver um amplo sistema de educação superior de massas, apoiado em milhares de "colleges" e um grande número de universidades públicas e privadas de todo o tipo e qualidade, os Estados Unidos acabaram por criar um grande mercado de trabalho para professores, para a educação dos quais se implantaram, de início, os programas de pós-graduação e de pesquisa científica acadêmica.
A diversidade permitiu também que, ao lado da educação massificada, algumas universidades e profissões estabelecessem padrões extremamente exigentes de desempenho e qualidade, como foi o caso da educação médica. A pesquisa científica e a pós-graduação, que é onde o sistema norte-americano possivelmente mais se sobressai, se desenvolveram pela combinação de pelo menos três fatores. Primeiro foi a maciça incorporação dos talentos que acompanharam as grandes migrações européias desde o século XIX, e continuaram no período de pré- e pós guerra, recriando nos Estados Unidos as tradições de trabalho e os padrões de excelência típicos das universidades européias de elite. Mas, segundo, por mais importantes e influentes que estes imigrantes tivessem sido, eles não impediram que continuassem a existir as centenas de "land grant colleges", escolas técnicas, institutos de engenharia e outras instituições que trabalhavam em íntima associação com a indústria e a agricultura, e davam à pesquisa acadêmica uma ponte natural e direta com o setor empresarial, que retribuía apoiando e financiando as instituições universitárias. E terceiro, a ausência de tradições acadêmicas mais consolidadas levou a uma inovação importante que foram as escolas de formação de pesquisadores e cientistas, os "graduate colleges", que fizeram da capacitação para a pesquisa não um simples credenciamento acadêmico, como na tradição européia, mas um tipo novo de formação profissional e especializada.
A diversidade se manifesta também na pluralidade de formatos organizacionais e institucionais. Não existe um ministério da educação, e ninguém se preocupa em dar uma definição oficial do que seja uma "universidade". Cada estado tem suas instituições, exitem muitas instituições privadas, dedicadas à pesquisa, à formação de professores, ao ensino profissional, à formação intelectual e acadêmica, à reciclagem de adultos, à formação religiosa e à obtenção de lucros.
O engano mais importante de Flexner pode ter sido a idéia de que semelhante agloomerado de instituições e papéis não teria como ser controla
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Em 1910, a Fundação Carnegie publica o Relatório Flexner, contendo uma critica à situação da medicina àquela época e propondo soluções para a questão. Este relatório se converteu na base para a implantação do ensino e da prática médica tal como hoje as encontramos. Suas propostas principais eram:
definição dos padrões de entrada e ampliação, para quatro anos, nos cursos médicos;
introdução do ensino laboratorial;
estímulo à docência em tempo integral;
expansão do ensino clínico, especialmente em hospitais;
vinculação das escolas médicas às universidades;
ênfase na pesquisa biológica como forma de superar a era empírica do ensino médico;
vinculac,ão da pesquisa ao ensino;
controle do exercício profissional pela profissão organizada.
Naquele momento histórico iniciava-se a era do cientificismo também na medicina e, em momento algum, observava-se qualquer preocupação com as questões ético-morais, nem na análise das circunstâncias do ensino médico, muito menos nas propostas de mudança presentes no relatório. A abrangência do Relatório Flexner era muito maior do que os limites da medicina, causando a fusão e fechamento de escolas médicas e de vagas oferecidas. Houve uma mudança na composição da classe social que compunha a profissão médica, e esta tornou-se um nicho reservado às classes média-alta e alta. Escolas médicas destinadas a negros foram fechadas e o número de alunos negros matriculados nas escolas remanescentes foi significativamente reduzido.Segundo Ziem, a medicina científica trouxe uma hierarquização da educação médica, resultando numa estrutura discriminatória, privilegiando homens, brancos, e as classes média-alta e alta. Tratava-se de uma composição social sensível à ideologia da medicina científica e que traria para a prática médica os valores morais próprios de sua categoria social .
No inicio do século, neste momento progressista, centenas de documentos foram elaborados com críticas e propostas de mudanças às mais diversas disciplinas e o Relatório Flexner teria sido mais um dentre eles se as fundações privadas americanas não houvessem aplicado na sua implementação, no período de 1910 a 1930, cerca de 300 milhões de dólares.Os profissionais da medicina, por meio da Associação Médica Americana (AMA), além de grandes indústrias, apoiaram a origem e consecução do relatório. A AMA criada em 1847, com a finalidade precípua de defender a alopatia ameaçada, naquele período, pela homeopatia, na verdade se tornou um campo de debates entre médicos clínicos e cientistas, até que estes últimos assumissem o controle da AMA na busca de uma medicina mais científica.
A medicina científica ou o sistema médico do capital monopolista institucionaliza-se hegemonicamente por meio da ligação orgânica entre o capital, as universidades e a corporação médica. Evidentemente, este fato trouxe mudanças substantivas no conceito de "objeto" da prática médica e, como conseqüência, alterou-se a relação doente x médico.A pessoa humana, antes vista como sujeito do processo terapêutico, respeitada em sua dignidade, vontade, liberdade e razão, transforma-se em objeto de estudos, consumidora de tecnologia, um indivíduo como os objetos de estudo de disciplinas como a química, a física ou a botânica.Conforme foi dito anteriormente, as alterações ocorreram na relação doente x médico e, portanto, trata-se do relacionamento, fenômeno que é dual, conseqüentemente, também os médicos passaram a ser vistos como simples prestadores de serviços, como outros profissionais presentes na sociedade.A objetivação do homem pela medicina trouxe consigo a mesma posição da sociedade em relação ao médico. A arte médica, desprestigiada pela própria medicina em favor da ciência e sua tecnologia, causou o embaçamento do mítico e do místico no papel social do médico.
Resumo: Alguns argumentam que a educação superior pública se justifica pela
responsabilidade do Estado de promover a eqüidade e alegam que a preocupação
com a excelência seja maior nessa modalidade; outros contestam que o ensino
superior gratuito faz com que os gastos do Estado em educação sejam
regressivos, e que os mecanismos do mercado incentivam a excelência e podem,
mediante políticas públicas justas, promover a eqüidade. Julgar essas opiniões
conflitantes demanda pesquisa avaliativa sistêmica. As experiências de diferentes
países a respeito são comparadas. O legado do Relatório Flexner, uma influente
avaliação institucional das faculdades de medicina nos Estados Unidos e Canadá,
publicada em 1910, é analisado em termos de eqüidade e excelência, aplicandose
os critérios do Comitê de Assistência para o Desenvolvimento – CAD:
eficiência, efetividade, impacto, relevância, sustentabilidade.
Abstract: Some argue that public higher education is justified by the responsibility
of the State to provide equity and allege that concern with excellence is greater in
this modality; others respond that free higher learning makes State expenditures in
education regressive, and that market mechanisms provide incentives for
excellence and can, through just public policies, promote equity. Assessment of
these conflicting opinions requires systemic evaluative research. The experience of
different countries in this regard is compared. The legacy of the Flexner Report, an
influential institutional evaluation of medical schools in the United States and
Canada published in 1910, is analyzed in terms of equity and excellence, applying
the criteria of the Development Assistance Committee (DAC): efficiency,
effectiveness, impact, relevance and sustainability.
neto
relatório de Flexner=Em 1910, o educador americano Abraham Flexner fez uma avaliação do ensino médico nos Estados Unidos e Canadá, e concluiu que, das 155 faculdades de medicina existentes, 120 apresentavam condições péssimas de funcionamento. Os alunos eram admitidos sem nenhum preparo, não existiam laboratórios, não havia relação entre a formação científica e o trabalho clínico, e os professores não tinham controle sobre os hospitais universitários. O relatório de Flexner, Medical Education in the United States and Canada, teve o efeito de um terremoto, e nos anos seguintes a quase totalidade das instituições por ele criticadas fechou suas portas.
O relatório Flexner ficou na história como um exemplo da importância da avaliação e do controle de qualidade, e sua história vem muitas vezes à tona quando pensamos nas condições precárias da maioria de nossas instituições de ensino superior. Que falta nos faz um Flexner, pensamos, e sobretudo que falta nos faz a existência de mecanismos que façam desaparecer as instituições que não cumpram com os critérios mínimos e aceitáveis de qualidade!
Alguns anos mais tarde, Flexner escreveria um livro comparando as universidades americanas, inglesas e alemãs, aonde pregaria a superioridade do modelo da universidade humboldtiana, alemã, sobre o dos demais países(1). As universidades modernas, pensava Flexner, devem ser instituições dedicadas à cultura, à ciência e às profissões cultas - tudo aquilo que a expressão alemã Wissenschaft significava. Elas devem ser as guardiãs da tradição, e o centro das formas mais avançadas de reflexão e conhecimento. Elas devem evitar a especialização excessiva, e não abrir espaço para a educação secundária, técnica, popular, ou meramente profissional. Nesta perspectiva, o ensino superior nos Estados Unidos parecia especialmente lamentável. O título de "universidade" era dado para instituições de qualquer tipo, não existia nenhuma noção sobre as diferenças entre a verdadeira cultura e a mera educação continuada ou a formação técnica e profissionalizante, e a venda de serviços educacionais de todo tipo, a quem quisesse pagar, por instituições de renome como a Universidade de Columbia, lhe parecia um verdadeiro escândalo. Era necessário, propunha, fazer com a Universidade americana como um todo o que já tinha sido feito com o ensino médico.
O conceito de qualidade utilizado por Flexner no início do século presidiu a legislação da reforma universitária brasileira. O artigo primeiro da lei 5.540, de 1968, reza que "o ensino superior tem por objetivo a pesquisa, o desenvolvimento das ciências, letras e artes e a formação de profissionais de nível universitário". O artigo 2@ diz que "o ensino superior, indissociável da pesquisa, será ministrados em universidades e, excepcionalmente, em estabelecimentos isolados". Nesta época, no entanto, o mundo já não era o mesmo. A Universidade alemã, demasiado amarrada ao Estado, não soube resistir à ascensão do nazismo, e perdeu, com ele, muito do brilho e do prestígio de que gozava até então. Não houve uma nova reforma Flexner para o ensino superior americano, mas, nos últimos 50 anos, os Estados Unidos desenvolveram o sistema de educação superior de maior porte, abrangência e qualidade de todo o mundo, e que é hoje copiado pela maioria dos países. Aonde Flexner errou? Aonde erramos nós?
Em 1968, no ano da Reforma Universitária brasileira e do movimentos estudantis na Europa e nos Estados Unidos, o livro de Flexner foi republicado com um prefácio de Clark Kerr, então presidente da Universidade da California. Neste prefácio, Kerr, ao mesmo tempo em que expressa sua admiração por Flexner, mostra com clareza aonde ele se equivocou, e o que significa uma universidade moderna e de qualidade nos dias atuais. Da análise de Kerr, dois aspectos nos interessam particularmente.
O primeiro equívoco de Flexner foi o de pensar na universidade como um todo integrado e orgânico, unido pelos valores comuns da ciência, das artes e da cultura. A aparente unidade das universidades tradicionais residia mais em seu tamanho reduzido, e na origem aristocrática de seus professores e alunos, do que em uma efetiva integração do conhecimento e da educação. As universidades modernas são gigantescas, juntam pessoas de todas as origens sociais e com maneiras muito diferentes de entender o que é a pesquisa, a educação, a cultura e as artes. Elas são, na expressão cunhada por Kerr, muito mais "multiversidades" do que universidades no sentido tradicional.
O segundo equívoco foi supor que esta diversidade de funções e valores não poderiam conviver sem se destruir mutuamente. Foi não entender que qualidade e quantidade poderiam combinar-se e se entender. Que não havia incompatibilidade entre prestar serviços à comunidade, dar cursos de verão, manter equipes de futebol e realizar pesquisas de alta qualidade. Foi tudo isto, precisamente, o que fizeram as grandes universidades americanas, e que as ajudaram a chegar na posição de prestígio e reconhecimento que têm hoje.
É claro que o fracasso das universidades alemãs, o sucesso das universidades americanas, e a posição intermediária ocupada pelas universidades inglesas, refletem em grande parte a posição relativa de cada um destes países a partir da segunda guerra mundial. Um sistema universitário, nos lembra Kerr, não pode ser separado do desempenho da sociedade que o apóia, não é uma coisa isolada. Isto, no entanto, não explica tudo. Ao se adaptar para a posição de liderança que assumiu na segunda metade deste século, o ensino superior americano desenvolveu algumas características que hoje são centrais para qualquer sistema de ensino superior que pretenda se ajustar ao mundo contemporâneo, e que por isto necessitam ser examinadas e entendidas com cuidado.
A principal característica deste sistema, assinalada por Kerr, é o pluralismo e a diversidade. Novos ricos, sem as tradições da aristocracia, os americanos criaram uma infinidade de formatos institucionais e de áreas de estudo, que iam desde as tentativas de reproduzir as melhores tradições inglesas e alemãs até o Departamento de Economia Doméstica da Universidade de Chicago, que aprovava, para horror de Flexner, teses de mestrado sobre "uma comparação de tempos e movimentos de quatro métodos de lavar pratos", ou sobre "a compra de roupa de mulheres pelo correio". A diversidade permitiu que o ensino superior norte-americano fosse o primeiro no mundo a se massificar, a ponto de que, hoje, cerca de metade dos jovens naquele país entrem em alguma instituição de ensino pós-secundário. É certo que, em boa parte, esta educação superior de massas acaba por compensar um ensino secundário de má qualidade, e proporciona qualificações que não mereceriam o título de "universitárias" em outras partes do mundo. Mas a tendência à massificação do ensino superior é um fenômeno mundial, que leva a um número cada vez maior de jovens e adultos a buscar educação em instituições de nível superior, que não podem, simplesmente, voltar as costas a esta demanda e a estas aspirações. Ao desenvolver um amplo sistema de educação superior de massas, apoiado em milhares de "colleges" e um grande número de universidades públicas e privadas de todo o tipo e qualidade, os Estados Unidos acabaram por criar um grande mercado de trabalho para professores, para a educação dos quais se implantaram, de início, os programas de pós-graduação e de pesquisa científica acadêmica.
A diversidade permitiu também que, ao lado da educação massificada, algumas universidades e profissões estabelecessem padrões extremamente exigentes de desempenho e qualidade, como foi o caso da educação médica. A pesquisa científica e a pós-graduação, que é onde o sistema norte-americano possivelmente mais se sobressai, se desenvolveram pela combinação de pelo menos três fatores. Primeiro foi a maciça incorporação dos talentos que acompanharam as grandes migrações européias desde o século XIX, e continuaram no período de pré- e pós guerra, recriando nos Estados Unidos as tradições de trabalho e os padrões de excelência típicos das universidades européias de elite. Mas, segundo, por mais importantes e influentes que estes imigrantes tivessem sido, eles não impediram que continuassem a existir as centenas de "land grant colleges", escolas técnicas, institutos de engenharia e outras instituições que trabalhavam em íntima associação com a indústria e a agricultura, e davam à pesquisa acadêmica uma ponte natural e direta com o setor empresarial, que retribuía apoiando e financiando as instituições universitárias. E terceiro, a ausência de tradições acadêmicas mais consolidadas levou a uma inovação importante que foram as escolas de formação de pesquisadores e cientistas, os "graduate colleges", que fizeram da capacitação para a pesquisa não um simples credenciamento acadêmico, como na tradição européia, mas um tipo novo de formação profissional e especializada.
A diversidade se manifesta também na pluralidade de formatos organizacionais e institucionais. Não existe um ministério da educação, e ninguém se preocupa em dar uma definição oficial do que seja uma "universidade". Cada estado tem suas instituições, exitem muitas instituições privadas, dedicadas à pesquisa, à formação de professores, ao ensino profissional, à formação intelectual e acadêmica, à reciclagem de adultos, à formação religiosa e à obtenção de lucros.
O engano mais importante de Flexner pode ter sido a idéia de que semelhante agloomerado de instituições e papéis não teria como ser controla