Futebol, o ópio do povo?

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Texto extraído do blog É Muito Pênalti, por Marcelo Barreto:

Não venho à Flip – a festa literária internacional de Paraty – para fugir do futebol. E hoje cheguei à conclusão definitiva de que, mesmo se quisesse, não conseguiria. Encontrar meu assunto de todos os dias nas palestras de Roberto da Matta e José Miguel Wisnik, como aconteceu em anos anteriores, ou num bate-papo com Hélio de la Peña e Cláudio Manoel, como foi o caso no café da tenda dos autores, ontem à noite, é algo já esperado e sempre bem-vindo. Mas ouvir uma pergunta – e uma resposta que vale um post – na palestra de Terry Eagleton, com essa eu sinceramente não contava.

Eagleton é uma figuraça. Inglês, casado com uma americana, mora na Irlanda. É católico e marxista, embora diga não ser exatamente nem uma coisa nem outra. Vive às turras com Richard Dawkins e Christopher Hitchens, dois dos pensadores mais influentes da atualidade, por causa da cruzada do primeiro contra a existência de Deus e da defesa do pensamento liberal professada pelo segundo. E onde é que entra o futebol nessa história? Pois é. Não deveria entrar. Apesar de ter nascido onde nasceu e de morar onde mora, o cara é um confesso ignorante no assunto.

“Mas minha ignorância nunca me deteve de opinar”, disse, como se fosse um colunista esportivo dotado de desconcertante autocrítica ao ser atacado por seus leitores, ouvintes, espectadores ou blogueiros, quando o mediador Silio Boccanera mencionou um artigo que ele escreveu para o jornal inglês The Guardian, com um título para lá de sugestivo: em tradução minha, “A Copa do Mundo é outro revés para qualquer mudança radical. O ópio do povo agora é o futebol”.

“Agora que estou no Brasil, retiro tudo”, brincou. Mas não retirou nada, e acrescentou bastante ao polêmico texto em que escreveu que Deus foi substituído por José Mourinho (chamado na Inglaterra de The Special One, o que inspirou a comparação com a unidade divina) e que, embora seja impossível fazê-lo, o futebol deveria ser abolido para que o mundo pudesse passar por uma mudança social séria.Não anotei, só guardei na memória o que ele disse, portanto peço um desconto à exatidão das aspas, mas Eagleton explicou mais ou menos assim sua aversão ao violento esporte bretão: “Vejo muito pouco futebol, mas o imagino como uma criação das classes dominantes. Elas se reuniram numa sala enfumaçada e perguntaram: o que podemos lhes dar para entretê-los?” Acho que não ouvia a expressão “classes dominantes” nem o povo ser tratado como “eles” desde a faculdade de comunicação. Mas o que mais me surpreendeu foi ouvir o futebol ser tratado não como uma alternativa à religião, e sim como seu substituto.

Eagleton certamente não se interessou o suficiente por futebol para ler as teses que atribuem a ele, para os brasileiros, o papel de coesão social que em outros países foi ocupado por exércitos, partidos políticos e, sim, grupos religiosos. Sua teoria do futebol transcende fronteiras e remete às características básicas da sociedade capitalista. “O capitalismo é por natureza e por necessidade pragmático e liberal”, disse, entre outros sinônimos que não consegui anotar. “Não há espaço para a transcendência do pensamento religioso, e o futebol é um substituto perfeito, com sua encenação da vida em 90 minutos.” Para Eagleton, o futebol ocupa na sociedade moderna o lugar da cultura, em seu sentido mais amplo: “tudo aquilo que você esteja disposto a matar ou morrer para defender”.

Seria fácil pensar nas torcidas organizadas brasileiras ou nos hooligans ingleses, mas tentei não interpretar literalmente. Mesmo alardeando um profundo desinteresse por futebol, ele acertou num ponto fundamental: para muita gente, é um clube – que os mais sérios gostam de chamar de instituição – que dá sentido à vida.

Não consegui prestar muita atenção no resto da palestra. Foi estranho me sentir parte de algo que não deveria existir para que o mundo possa mudar. Mas o próprio Eagleton me confundiu quando disse que a frase usada na comparação com o futebol é sempre citada fora de contexto. Fica faltando a frase que Marx escreveu imediatamente antes: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma.” Depois, é verdade, ele diz que o homem só encontrará sua felicidade real se abandonar o que chama de felicidade ilusória da religião.

Terry Eagleton conseguiu tirar da leitura de Marx a possibilidade de um mundo marxista que não exclua a religião. Quem sabe depois da Flip ele não resolve ir ao Maracanã e acha um espacinho para o futebol também…

À noite, fui ver Robert Crumb falar sobre a origem do universo. Graças a Deus, ele não falou de futebol.

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