Campos ocupa um lugar especial no tríptico dos heterónimos principais de Fernando Pessoa. Talvez porque, segundo alguns biógrafos, seja o heterónimo mais honesto e aquele que melhor demonstra as suas emoções.
Parece-nos que o poema em questão se enquadra na terceira fase de Álvaro de Campos, a fase pessimista, onde ele cai num torpor diferente do da primeira fase, porque menos optimista e mais saudosista e frágil.
Embora haja alguma decisão nestes versos, vê-se logo de seguida que é uma decisão inconsequente: “Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção. / Quero fazer isto agora (...) / com o mesmo resultado / Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!”
É o “própósito claro” que o poeta elogia, porque é aquele pouco que consegue atingir, ficando muito aquém da realização dos seus objectivos. Afinal “arrumar a vida” é mais difícil do que parece. E muito mais complexo será “pôr prateleiras na vontade e na acção”, ou seja, tentar disciplinar o que se quer fazer e o que se pode fazer.
Ele quer tudo isto. Quer disciplinar a sua vida, pôr tudo em ordem, ter objectivos claros, um propósito. No entanto, não lhe basta querer. O resultado é o “mesmo”, ou seja, ele nunca consegue ordenar nada. Resta-lhe só um orgulho pobre de querer, mesmo que não consiga nada.
Campos não deixa que a sua vida se organize, não deixa que ele próprio faça “as malas para o Definitivo”, ou seja, que possa desejar uma vida mais definida, mais simples e sem problemas.
O seu “antes de ontem é sempre”. Campos nunca se vai organizar, e ele sabe-o de uma maneira que é quase dolorosa.
O seu sorriso (as aliterações “sorriso do...”, “sorrio ao...”) é falso, fingido. Sorrie pela maneira romântica como os homens imaginam puder organizar-se. Ninguém realiza nada, ninguém organiza a vida como quer, ninguém consegue tudo aquilo que imagina poder ser seu.
Se Campos é assim, também assim são os “outros”. “Os outros também são românticos, / Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,”...
Os outros afinal são como ele: “os outros também são eu”. É talvez dos raros momentos na poesia de Pessoa em que ele por momentos se identifica com a “humanidade” e não insiste numa posição solitária de conforto ilusório. É na solidão que muitas das vezes Pessoa encontra o reduto para a sua energia poética.
Mas, como em outros poemas (lembramo-nos da “Tabacaria”, onde ocorre um momento parecido), Campos é arrancado dos seus pensamentos por um movimento do “mundo real”. Desta vez é a vendedeira, com o seu pregão. Campos levanta os olhos dos papéis para a janela de onde vinha a canção popular.
O sorriso ainda o tinha nos lábios e deixa que por momentos o sorriso, de triste, passe a metafísico. Um sorriso de critica.
Seja como for, ele agora está “acordado” novamente. Caiu da metafísica para física, concluindo o que pensou: “Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar, / Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando”.
Mas qual a conclusão do seu raciocínio?
Nenhuma. Ele fecha a secretária e o poema, sem arrumar nem a secretária nem o poema. Afinal a confusão de pensamentos continua na sua mente, por arrumar e Campos sente que o poema saiu confuso, como o que pensava. A semelhança da confusão entre os versos e os pensamentos alicia a interpretação de que a linguagem poética lhe fluiu do corpo para o mundo, a maneira de interpretação válida dos acontecimentos que não podiam ser interpretados de outra forma.
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Campos ocupa um lugar especial no tríptico dos heterónimos principais de Fernando Pessoa. Talvez porque, segundo alguns biógrafos, seja o heterónimo mais honesto e aquele que melhor demonstra as suas emoções.
Parece-nos que o poema em questão se enquadra na terceira fase de Álvaro de Campos, a fase pessimista, onde ele cai num torpor diferente do da primeira fase, porque menos optimista e mais saudosista e frágil.
Embora haja alguma decisão nestes versos, vê-se logo de seguida que é uma decisão inconsequente: “Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção. / Quero fazer isto agora (...) / com o mesmo resultado / Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!”
É o “própósito claro” que o poeta elogia, porque é aquele pouco que consegue atingir, ficando muito aquém da realização dos seus objectivos. Afinal “arrumar a vida” é mais difícil do que parece. E muito mais complexo será “pôr prateleiras na vontade e na acção”, ou seja, tentar disciplinar o que se quer fazer e o que se pode fazer.
Ele quer tudo isto. Quer disciplinar a sua vida, pôr tudo em ordem, ter objectivos claros, um propósito. No entanto, não lhe basta querer. O resultado é o “mesmo”, ou seja, ele nunca consegue ordenar nada. Resta-lhe só um orgulho pobre de querer, mesmo que não consiga nada.
Campos não deixa que a sua vida se organize, não deixa que ele próprio faça “as malas para o Definitivo”, ou seja, que possa desejar uma vida mais definida, mais simples e sem problemas.
O seu “antes de ontem é sempre”. Campos nunca se vai organizar, e ele sabe-o de uma maneira que é quase dolorosa.
O seu sorriso (as aliterações “sorriso do...”, “sorrio ao...”) é falso, fingido. Sorrie pela maneira romântica como os homens imaginam puder organizar-se. Ninguém realiza nada, ninguém organiza a vida como quer, ninguém consegue tudo aquilo que imagina poder ser seu.
Se Campos é assim, também assim são os “outros”. “Os outros também são românticos, / Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,”...
Os outros afinal são como ele: “os outros também são eu”. É talvez dos raros momentos na poesia de Pessoa em que ele por momentos se identifica com a “humanidade” e não insiste numa posição solitária de conforto ilusório. É na solidão que muitas das vezes Pessoa encontra o reduto para a sua energia poética.
Mas, como em outros poemas (lembramo-nos da “Tabacaria”, onde ocorre um momento parecido), Campos é arrancado dos seus pensamentos por um movimento do “mundo real”. Desta vez é a vendedeira, com o seu pregão. Campos levanta os olhos dos papéis para a janela de onde vinha a canção popular.
O sorriso ainda o tinha nos lábios e deixa que por momentos o sorriso, de triste, passe a metafísico. Um sorriso de critica.
Seja como for, ele agora está “acordado” novamente. Caiu da metafísica para física, concluindo o que pensou: “Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar, / Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando”.
Mas qual a conclusão do seu raciocínio?
Nenhuma. Ele fecha a secretária e o poema, sem arrumar nem a secretária nem o poema. Afinal a confusão de pensamentos continua na sua mente, por arrumar e Campos sente que o poema saiu confuso, como o que pensava. A semelhança da confusão entre os versos e os pensamentos alicia a interpretação de que a linguagem poética lhe fluiu do corpo para o mundo, a maneira de interpretação válida dos acontecimentos que não podiam ser interpretados de outra forma.